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Filho de rica e influente família ateniense, Platão começou a sua carreira filosófica como estudante de Sócrates. Quando o mestre faleceu, Platão viajou ao Egito e à Itália, estudou com discípulos de Pitágoras e passou muitos anos como conselheiro da família do legislador de Siracusa.

 

Algum tempo depois Platão retornou a Atenas e estabeleceu sua própria escola de filosofia, conhecida como “Academia”. Para os estudantes que passaram por lá, Platão tentou tanto passar sua herança , bem como o estilo de Sócrates e a arte de pensar e guiar o progresso individual através do estudo da matemática e procurando a abstração da verdade filosófica. Os diálogos escritos sobre isso , e que lhe deram a reputação, servem a ambos esses fins.

 

A peça mais famosa dentre os diálogos de Platão é República (Politeia) . Ela começa com uma conversa de Sócrates sobre a natureza da justiça e prossegue diretamente com uma extensa discussão sobre as virtudes ( areth [aretê] ) , a justiça (dikaiwsunh [dikaiôsunê]), a sabedoria (sofia [sophía]), a coragem (andreia [andreia] ) e a moderação (swfrosunh [sophrosúnê] ) , assim como elas aparecem tanto como individualidade humana quanto como regras da sociedade e, ao final, elabora , em hipótese, o que seria o ideal de constituição de uma república, à qual deu o nome de Utopia.

Um afresco de Raphael, provavelmente inspirado em Leonardo da Vinci.

O gesto de Platão, com o indicador em direção às nuvens representa a sua crença nas Formas.

 

                                   O mais  famoso   trecho  da República é  o  chamado “Episódio da Caverna”  ,  no qual  muitos  especialistas  vêem  uma figuração  do  destino de Sócrates, que,  por enxergar   as verdades  filosóficas  além   das fronteiras   de sua  época,  e tentar  ensiná-las à  juventude,  teve  um fim trágico ,  ou seja,  a  condenação ao suicídio  pela ingestão do veneno  cicuta, por julgamento dos   governantes  de então, arraigados  a conceitos equivocados  de  existência  e  sociedade.
                       
                                   Com a  análise  dessa  hipótese  da caverna,  Platão  coloca  sua idéia  de direitos naturais e  políticos :   o Estado, entidade  criada para atender  o bem comum  para todos os cidadãos, não pode ter   suas finalidades  deturpadas,  ou  deixar de atender  a  todos  ou  atender apenas a  uma minoria,  diante  da  idéia  equivocada  dos governantes quanto aos conceitos do bem comum, da  justiça e da  liberdade . Falhando em qualquer dessas hipóteses, falha estará a finalidade do Estado  - e quanto a isso faz o paralelo entre    a situação dos prisioneiros da caverna  idealizada e  a  de governantes pouco esclarecidos, que não vêem   senão falsas  sombras do passado e  não  desejam  enxergar as verdades do presente, e tudo o mais   o que é  necessário para  se fazer evoluir  o povo de  uma república, em um  Estado.  Aí, então, coloca  em evidência  o papel  da  educação e da filosofia para determinar e proteger  os direitos  naturais e  políticos, conforme as regras que   expõe  em  toda a  sua  obra -  não só em  “A República”,  mas  também com bastante ênfase  em “As Leis” .      

                                      

                                   É   justamente  esse trecho  dos diálogos  de “A República” que  vamos  transcrever  abaixo, convidando o leitor  a, posteriormente, fazer uma leitura do restante   da  obra , em cujo contexto se  pode encontrar uma  vasta  dissertação  de Platão, detalhadamente   questionada  em todos os seus aspectos  pelos  discípulos  da sua célebre  Academia, atual a todas as épocas .

 

Indicação :
A versão do “Episódio da Caverna” abaixo é  uma compilação de parte de “A República“,   de Platão  ,  nas traduções  francesa e  portuguesa :

Éditions Gonthier, Bibliothèque Médiations,  publiée sous la direction de Jean-Louis Ferrier
Traduction d’Emile Chambry, 1966 , Livre VII (514 a 514 b) pp.216-222.

Biblioteca  Clássica, vol. XXXVIII, 6ª . ed., Atena Editora, São Paulo, 1956, trad. de Albertino Pinheiro, Livro VII (51ª 514 b) pp.287-295.

 

                                                          “    LIVRO  VII

Sócrates                      Representa    agora  a nossa natureza, segundo a qual  se  é  ou  não é  esclarecido  pela educação,   conforme  a representação alegórica que  passo a fazer. Imagina homens  encerrados em  uma  morada  subterrânea e cavernosa,  na qual a entrada, que dá entrada  livre  à  luz,  é uma abertura  que se estende em toda a fachada; cada um está  ali desde a infância, com o pescoço e  as a pernas   presos com correntes   de maneira que  não podem  mudar de  posição nem ver senão aquilo que  está à sua frente; porque as cadeias  os  impedem de voltar  o  rosto;atrás  deles, a  uma certa distância e altura, está aceso um fogo que brilha às suas costas ; entre  o fogo e os prisioneiros existe  uma estrada  escarpada; ao longo dessa estrada, imagina  um pequeno   muro,  parecido com  os tabiques que  os  exibidores de marionetes colocam entre eles e  o público  e graças aos quais  eles  podem fazer   suas prestidigitações.

 

Glauco                         Imagino tudo isso.

 

Sócrates                      Imagina agora ao longo desse  pequeno  muro  homens que passam,  portando toda espécie  de utensílios, que  ultrapassam a altura do muro, e figuras de homens e  de animais, em pedra , em madeira, de todas as formas; e  naturalmente dentre  esses portadores,  uns falam,  outros  não  dizem nada.

 

Glauco                         Eis aí  um estranho quadro e estranhos prisioneiros!

 

Sócrates                      Eles  se  parecem conosco, eu te respondo. E  pensas    que   eles  tenham   visto de  si  mesmos e de   seus  vizinhos  outra  coisa   que  não fossem as suas  sombras  projetadas  pelo fogo sobre a  parte da caverna  que  está à sua frente?       

 

Glauco                         Poderia ser de  outra maneira, se  eles   são forçados toda sua vida  a  ficar  com a  cabeça  imóvel?

 

Sócrates                      E  sobre os  objetos que  desfilam,  não se  dá a  mesma coisa ?

 

Glauco                         Sem contradita .

 

Sócrates                      Por conseguinte,  se  eles  pudessem conversar  entre  si, não pensas  que  eles  acreditariam nomear  objetos reais quando estivessem  nomeando   as  sombras  destes que  vissem ?

 

Glauco                         Necessariamente.

 

Sócrates                      E  se  houvesse  um eco que  ressoasse  os  sons   do fundo da  prisão, todas as vezes que  um dos  passantes  viesse a falar, crês que  eles  não  acreditariam que  essa voz  fosse da  sombra  que estivesse   desfilando  ?

 

Glauco                         Sim, por Zeus.

 

Sócrates                      É  indubitável , continuo eu,       que aos olhos  dessas  pessoas  a  realidade   não seria  outra coisa senão as sombras  dos  objetos.

 

Glauco                         Seria assim,  necessariamente.

 

Sócrates                      Examina agora como eles  reagiriam se  fossem  libertos de  suas correntes e  curados da   ignorância em que estavam mergulhados   e  se as coisas  se passassem como da  forma a seguir.

                                   Imagina  que  se retire das  correntes  um desses  prisioneiros, que ele seja forçado  a se  levantar rapidamente, a  virar  o pescoço, a  andar, a direcionar   os seus olhos para a   luz. Todos esses  movimentos  o farão sofrer, e  o ofuscamento que terá com a luz o impedirá de observar  os  objetos dos quais  ele  via apenas  as  sombras a toda hora. Eu te  pergunto o que  ele  poderá responder , se  lhe  dissessem que  a toda  hora ele via apenas coisas sem consistência, mas que agora ele estava  mais próximo da realidade frente aos  objetos reais, e assim  ele via com mais  exatidão. Se, enfim,  o fizessem  ver   cada um dos  objetos que  desfilam diante dele agora e  se  o forçassem a dizer  o que eram? Não acreditas que  ele  ficaria confuso e que  os  objetos que  ele  estava acostumado a ver  o tempo todo na  parede da caverna    lhe  pareceriam mais  verdadeiros   do que aqueles que  lhe  estavam sendo  mostrados  agora ?            

 

Glauco                         Bem  mais  verdadeiros.

 

Sócrates                      E  se ele fosse forçado  a olhar  para  a  própria  luz, não acreditas que  os  olhos ficariam mal  e  que  ele  fugiria e voltaria para as coisas que  ele podia  observar e que ele as  julgaria  realmente  mais   claras  ou perceptíveis  do  que aquelas que lhe  são  mostradas?

 

Glauco                         Acredito, sim.

 

Sócrates                      E  se  ele fosse  retirado de lá à força, se  ele fosse  forçado a subir a  rampa rude e  íngreme  para fora da caverna   e  se  não fosse solto senão quando estivesse  olhando diretamente para a luz  do sol,  não pensas que  ele sofreria  muito e  se revoltaria por ter sido assim arrastado e que, uma vez chegando  até  a  luminosidade, ele teria os  olhos ofuscados pelo  grande  brilho e  não poderia ver  nenhum dos  objetos que  presentemente  nós  chamamos de  verdadeiros?

 

Glauco                         Ele não poderia vê-los de forma  nenhuma.

 

Sócrates                      Ele deveria, isto sim,  ter  sido habituado aos poucos , se ele quisesse ver  o mundo superior. Inicialmente, o que  ele poderia ver mais facilmente  seriam as sombras, depois as  imagens dos homens e dos  objetos  refletidos nas águas, depois  os  objetos mesmos; depois, elevando seus  olhos até a  luz dos astros e  da  lua , ele contemplaria durante a  noite  as constelações  e  o firmamento mesmo  mais facilmente  do que   faria  durante  o dia, sob   a   claridade  do sol.    

 

Glauco                         Sem dúvida.

 

Sócrates                      E por fim,  penso eu, seria  o próprio sol, tal qual ele é, e  não sobre as águas, nem  como imagem  refletida  sobre  algum  objeto,  mas  o sol em si  mesmo, no seu próprio ambiente, que  ele  poderia contemplar.

 

Glauco                         Necessariamente.

 

Sócrates                      Depois disso, ele concluiria  a respeito do sol, que é ele quem  produz as estações e  os anos, que ele governa tudo  no mundo, que  ele é, de qualquer  forma, a causa de todas essas coisas que ele e seus companheiros viam  na caverna.

 

Glauco                         É evidente que  ele  seria levado a essa conclusão, após todas essas diversas  experiências .

 

Sócrates                      Se  em  seguida ele  pensasse  em  sua  primeira residência e no  conhecimento que se possui ali  e em seus companheiros de cativeiro,  não crês que  ele  se regozijaria  pela  mudança que obtivera    e se tomaria de piedade por eles ?

 

Glauco                         Sim, é certo.

 

Sócrates                      Quanto às honrarias e elogios que acaso  existisse  entre eles , para aquele que  melhor  discernisse por  observação  visual  os objetos que passavam, que  se  lembrasse com mais  exatidão daqueles que  passavam com maior  ou menor regularidade, ou  juntos, e que  por  isso fosse o mais hábil   em adivinhar  o próximo que  passaria, pensas que  o nosso  homem ficaria com inveja  ou  ficaria com ciúmes  daqueles que   fossem detentores de tais  honrarias   e  habilidades  no seu cativeiro    ? Não pensarias como o Aquiles de Homero  e  não preferirias cem vezes  ser  um   puxador de arado a serviço de  um pobre  lavrador  e suportar todos os males  possíveis a  ter que  voltar às antigas  ilusões  e viver como ele vivia na caverna?

 

Glauco                         Eu concordo plenamente contigo : ele preferiria  suportar toda espécie de  sofrimento  a  ter de  voltar àquela antiga  vida.

Sócrates                      Imagina agora  o que  vou  colocar a seguir. Se  nosso  homem descesse à caverna  de novo e  retomasse  seu antigo  lugar,  ele  não teria  os  olhos  ofuscados  pela  treva, saindo  bruscamente do sol?

 

Glauco                         Certamente,  sim.

 

Sócrates                      E  se  fosse  necessário a ele, enquanto sua vista ainda  estivesse confusa,antes  que seus olhos  estivessem reacostumados à escuridão , o que demandaria  algum tempo,  julgar  as  sombras  projetadas  na parede da caverna e  concorrer  com os  prisioneiros que  jamais  haviam deixado as correntes,  não  conseguiria ele  mais  do que  fazê-los  rir? E  não diriam eles , que  por ter subido até a  entrada da caverna, ele teria ficado com os  olhos  cegos  e , que, sendo assim,  não valia a   pena  tentar  a ascensão?  E que, se qualquer  um  tentasse   libertá-los e conduzi-los ao alto,  se  eles  pudessem  colocar  as  mãos  sobre  este e  matá-lo, certamente  não  o matariam?

 

Glauco                         Certamente eles  o matariam.

 

Sócrates                      Agora é  necessário, meu caro Glauco, aplicar  exatamente essa  imagem ao que  havíamos  dito mais acima : é  necessário assimilar  o mundo visível no ambiente do  interior da prisão e a luz  do fogo  que a  clareia ,   sob  o efeito do    sol ;  na  subida até o mundo superior e  na chegada  à contemplação  dessas maravilhas,  vê  a  ascensão  da  alma  ao mundo inteligível  e  não te enganarás  sobre  o meu pensamento, uma vez  que tu desejas  conhecê-lo.  Deus sabe se ele é verdadeiro; em todo caso, é  minha  opinião, que nos últimos  limites do mundo inteligível  está a idéia do bem,  que  nós  percebemos  com  muito esforço, mas que  não se  pode perceber  sem concluir que ela é a causa  universal de tudo que há de bom  e de  belo; que  no mundo visível  é ela a criadora da luz  e  do  distribuidor da luz ; e que  no mundo  inteligível, é  ela que  distribui e procura a   verdade e a  inteligência, e que  é  necessário enxergá-la para se conduzir com  sabedoria, seja  na vida privada, seja na  vida  pública.

 

Glauco                         Eu tenho  o teu mesmo entendimento, até onde eu  posso seguir teu pensamento.

 

Sócrates                      Segue então o meu pensamento sobre  este  ponto :  não é de espantar que  aqueles que são elevados até  lá não  estejam mais  dispostos   a  se ocupar  com  afazeres humanos  e que suas almas aspirem sem cessar   a  permanecer   nessas alturas. Isso é bem natural,  se ainda  sobre esse  ponto nos reportarmos  à nossa  alegoria.          

 

Glauco                         Bem natural, com efeito.

 

Sócrates                      Mas,  pensa em como  ele fica atordoado  quando passa  dessas contemplações divinas  às   realidades  miseráveis da vida  humana. E em como  ele apresenta   um ar  esquisito e  talvez ridículo, porque, tendo ainda a vista turbada e  não estando ainda suficientemente habituado às trevas para  onde ele acabou de cair, ali  é forçado a disputas  nos tribunais , ou  melhor dizendo,  disputas  sobre as sombras  do que é justo   ou sobre as  imagens   que essas sombras projetam e a combater as  interpretações  do que  seja  justo que  fazem  as  pessoas que  nunca  chegaram a  ver  a justiça   em si mesma?

 

Glauco                         Isso  não é  de admirar.

 

Sócrates                      Mas uma    pessoa sensata se  lembraria de que os olhos  são turvados  de duas  maneiras  e  por duas causas opostas, isto é,  pela  passagem  da  luz à  obscuridade e  da  obscuridade à  luz; então refletiria  que esses dois casos se aplicam também à alma. E em  lugar  de  se  rir  desse  fato sem  motivo,  examinaria  se, ao sair de uma vida mais luminosa, ela  não é,  repentinamente, perturbada pelas trevas, ou se, vindo da  ignorância para a luz esplendorosa, ela não se ofuscaria  diante  de tanta claridade.  No primeiro caso, essa pessoa a felicitaria  por sua perturbação  e pelo  uso que estava fazendo de sua vida; no  outro,  a  lamentaria, e, se  lhe viesse a vontade  de rir  por causa disso, esse riso  seria  menos ridículo do que  se  essa pessoa se atirasse  sobre a  alma que  retornasse  da  luz  para as trevas.

 

Glauco                         Muito acertada essa distinção.

 

Sócrates                      É necessário agora, se tudo isso é verdade,  tirar a seguinte conclusão :  que a educação  não  é  aquilo que algumas pessoas proclamam; elas pretendem  com efeito  introduzir  a ciência  na alma, onde ela  não está,  como se introduziria   a visão  em  olhos cegos.

 

Glauco                         Realmente.

 

Sócrates                      Partindo-se da  premissa de que tudo isso é verdade, é  necessário, então, tirar-se a seguinte conclusão : a  educação  não é certamente o que alguns proclamam que  ela seja; eles pretendem  inserir  o conhecimento  na alma,  vazia  dele, como se estivessem colocando a visão em  olhos cegos.

 

Glauco                         É isso que  tentam , realmente.

 

Sócrates                      Ora,  o  presente discurso faz ver que toda alma tem a  sua  própria faculdade   de  aprender  e  um órgão apropriado  para  esse fim, e que, assim  como um  olho    não pode  sair da  obscuridade  a  não ser   em conjunto com todo o restante  do corpo, esse órgão  deve ser desviado das coisas perecíveis juntamente com a alma, até que ele  se torne capaz de suportar a visão do ser  e  da  parte  mais brilhante do ser,  o que, em suma,  nós chamamos do  bem em si mesmo , não é  assim  ?

 

Glauco                         Certamente.

 

Sócrates                      A educação é a arte de  redirecionar   esse órgão e de encontrar para isso o  método mais fácil  e  mais eficaz; ela   não consiste  em  entregar a visão a  esse órgão, porque ele já a possui; mas, como ele  está  mal  dirigido   e  olha  para  longe  de  onde deveria,  é  necessário  seu redirecionamento.  

 

Glauco                         É o que  se apresenta.

 

Sócrates                      Agora se  pode admitir que as outras faculdades  chamadas faculdades  da alma  são análogas às faculdades do corpo; porque é verdade que, quando  perdemos algumas,  podemos readquiri-las  pela  prática e  pelo exercício.Mas  a faculdade de conhecer  parece mais acertadamente pertencer a algum estágio  mais divino,eis  que  não perde jamais  seu poder,tornando-se apenas  útil e vantajosa  ou  inútil e  nociva , conforme  os  objetivos para os quais a direcionamos.  Não  notaste ainda , a  propósito daqueles  que  chamamos malfeitores, como o seu espírito  miserável tem  uma  visão sagaz  e distingue  nitidamente as coisas  que  lhe  interessam? Isso acontece  porque, além dele  não ter   uma visão fraca,   ela  está  toda   aplicada  ao  serviço  de sua atividade de malfeitoria; assim, quanto  mais  sua visão for sagaz, mais  ele fará de mal.

 

Glauco                         É dessa forma.

 

Sócrates                      E, se desde a  infância se  pudesse  corrigir  a  alma  com esses   pendores  naturais, retirando-se  dela ,por assim dizer,  esses pesos   de chumbo, que  são  da  família  do destino futuro, e que, amarrados à  alma pelo  liame dos festins, dos prazeres e  dos  apetites de todo gênero, voltam a visão  para  o baixo-mundo;se,  desembaraçada  desses pesos, pudéssemos  colocá-la  frente à verdade, essa mesma alma, no interior dos   mesmos homens , não  a veria  com a  maior  nitidez , como ela  vê as coisas  para as quais   atualmente  se volta ?

 

Glauco                         Realmente é  verdade.

 

Sócrates                      Não  é  verossímil também  e  não se conclui  necessariamente de tudo isso que  nós dissemos,  que nem  as  pessoas sem educação e  sem conhecimento da verdade, nem  aqueles que deixam passar toda a sua vida   sem  o  estudo  sejam  próprias  para  o governo do Estado? Uns ,  porque não têm  na sua vida  nenhum ideal em  que   possam fundamentar todos os seus atos , privados  ou públicos;  os  outros,  porque   não  consentirão  em  se  ocupar,  eles que  , de acordo com sua maneira  de viver,  já  se crêem  estabelecidos  nas  ilhas dos bem-aventurados ?  

 

Glauco                         Isso é  verdade.

 

Sócrates                      Cabe  então a  nós, os fundadores do Estado,  obrigar os  homens de elite a se  voltar  para a ciência  que nós reconhecemos   sempre como a  mais sublime de todas,  a de ver  o bem  e  de fazer a ascensão de  onde  nós  acabamos de falar; mas  quando, chegados a essa região superior, eles tenham  contemplado suficientemente o bem,  resguardemo-nos  de  lhes  permitir  o  que  lhes  é  permitido  hoje em dia.

 

Glauco                         O  que, então ?

 

Sócrates                      Fixar-se  lá  nas alturas e  não mais querer   tornar a descer  entre  os pobres  prisioneiros,  nem tomar  parte  em seus trabalhos e  suas  honras mais  ou menos estimáveis.

 

Glauco                         Mas  então, nós  estaremos atentando contra seus direitos e  os forçaremos a deixar  uma vida mesquinha, quando  eles  poderiam desfrutar de  uma condição mais  feliz?

 

Sócrates                      Tu te esqueces mais  uma  vez, meu amigo, que  a  lei  não se destina  a assegurar  um bem-estar  excepcional  a  uma classe de cidadãos, mas que ela procura realizar  o bem-estar  de toda a sociedade,   unindo  os cidadãos , seja  pela persuasão, seja  por  meio da autoridade, levando-os a  fazer   cada  um e cada classe  os trabalhos   de que são capazes  em benefício da comunidade;  e que, se ela se destina   a conceder  igualdade aos cidadãos dentro do Estado, isso  não  é  para deixá-los  fazer sua  atividade  onde  lhes agrada, mas   para   fazê-los concorrer  para   fortificar   as relações  do Estado.

 

Glauco                         É verdade, eu havia esquecido.”

 

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Tradução  a partir da versão francesa , de Lia Pantoja Milhomens
Fonte :
Éditions Gonthier, Bibliothèque Médiations,  publiée sous la direction de Jean-Louis Ferrier
Traduction d’Emile Chambry, 1966 , Livre VII (514 a 514 b) pp.216-222


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